SOU NEGRA E BELA!

SOU NEGRA E BELA!

Por Anna Marília Paiva
"Oh! Mulheres de Jerusalém, eu sou negra e bela. Sou negra como as barracas do deserto, como as cortinas do palácio de Salomão". Cantares
de Salomão 1.5.
Os leitores certamente lembrarão das imagens de amor deste que é
considerado um dos mais belos poemas da humanidade. Mas, a moça em
torno da qual gira a narrativa é motivo de acirrada polêmica,
principalmente para teólogas e teólogos negros. Segundo a ensaísta            
norte-americana Peggy Ochoa, o livro de Cantares traz à tona os
detalhes dolorosos da animosidade entre grupos étnicos no reinado de
Salomão.
Estamos aqui diante de uma constatação fundamental: a Sulamita, mulher
inspiradora dos poemas de amor do livro de Cantares, era uma bela
negra. E quando as filhas de Jerusalém, que faziam parte da casta
dominante ligada à corte, protestaram ao descobrir a paixão do rei, a
Sulamita respondeu ao clamor preconceituoso com a famosa afirmação:
"Eu sou negra e formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de
Quedar, como as cortinas de Salomão".
Na versão inglesa King James, a Sulamita diz, nos versos 5 e 6 (ênfase
minha): "I am black, BUT comely... ". Mas, na Bíblia hebraica, lemos
assim o mesmo texto, em representação fonética e ênfase minha:
"shekhorah ani VE na'vah...".
Em hebraico não há distinção entre "porém" e "e". A conjunção hebraica
"ve" pode ser traduzida por "porém" ou "e". O tradutor decidirá por um
ou por outro com base no contexto. Mas, tanto no inglês como no
português, a escolha pode fazer uma diferença enorme.
Mas, por que o tradutor da versão King James, assim como os nossos              
tradutores, optaram pelo "porém"? Talvez porque essas traduções tenham
sido feitas através do filtro cultural branco e ocidental, já a partir
da versão latina da Bíblia, a Vulgata, que introduziu o "porém": Nigra
sum sed formosa. Eu sou negra, "porém" formosa. Não negra e bela, mas
bela apesar de negra.
Segundo a teóloga Susan Durber, da St. Columba United Reformed Church,
Oxford, no ensaio A Rainha do Sul se fará presente no Julgamento
quando esta geração estiver sendo julgada, uma mulher pode nos ajudar
a entender este enigma. Em I Reis 10 encontramos a história da rainha
do Sul, ou rainha de Sabá. Uma mulher inteligente, que fez perguntas
duras a Salomão. Queria saber se ele era tão sábio quanto se
comentava. Assim, o antigo testamento está interessado nela por causa
de sua inteligência.
Mas um fato significante sobre Sabá é que ela era negra. Não se sabe
exatamente de que região. Poderia ser do Iêmen ou do Norte da África,
possivelmente da Etiópia. Os falachas, judeus etíopes, e os rastafares
reivindicam ser descendentes de Menelik, o filho de Salomão e Sabá. E
também para os cristãos negros de todo o mundo, Sabá surge como ícone
racial e é vista como a musa de Cantares de Salomão.
O poeta W. B. Yeats, por exemplo, releu o verso "sou negra e bela" e
poemou assim: "Salomão cantou a Sabá, e beijou a face negra dela".
Ainda segundo Durber, onde os cristãos africanos celebraram a cor
negra de Sabá, o cristianismo europeu marginalizou sua história. Na
rainha de Sabá, viu a história de uma mulher pagã, uma mulher
estrangeira que tinha se rendido à verdadeira fé. Em sua rendição,
aparentemente, Sabá perdeu também a cor negra de sua pele.
Já que, para o Ocidente, a história de uma mulher sábia não combinaria
com a história de uma negra, tal leitura produziu uma terrível
alienação na igreja cristã européia e norte-americana, que levou ao
terror e ao medo do "outro de cor negra". Dessa maneira, o "outro de
cor negra" foi seduzido, subjugado e domesticado. E a leitura que se
fez do texto é que Sabá capitulou a Salomão e tornou-se culturalmente
branca.
Na verdade, Sabá foi companheira de Salomão e o texto pode ser
compreendido assim. Mas a tradição, a partir da Vulgata, fez dele um
conquistador e dela uma conquista, gerando ideologias como a da
vitória da Europa sobre Oriente, do homem sobre a mulher, do branco
sobre o negro e da verdade sobre o erro.
Porém, o antigo testamento fala de negros e de nações africanas, como
Cuxe, Mizraim e Pute, que hoje são a Etiópia, o Egito e a Líbia. Até a
construção do canal de Suez, em 1859, não se fazia distinção entre as
terras bíblicas. O cenário da atuação divina cobria também a península
do Sinai, o Egito, que está na África. E Israel era visto como parte
do continente africano. Só com a construção do canal de Suez, a África
passou a ser olhada como continente separado do Oriente Médio.
No antigo testamento, Israel é uma nação africana e semita, e a
mensagem que levou ao mundo teve início nesse continente negro. E,
embora muitos afro-brasileiros vejam a Igreja como de origem européia,
a história mostra que teve origem multirracial e que os textos
bíblicos começaram a ser escritos na África.
Por isso, as cristãs africanas e descendentes podem, conscientes de
sua raça e cor, dizer junto com a Sulamita: "Eu sou negra e bela, como
as barracas do deserto, como as cortinas do palácio de Salomão".
Fonte: http://jorgepinheirosanctus.blogspot.com
 
 

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