A IGREJA TEM AUTORIDADE PARA EXCLUIR?




 A pergunta que nosso título coloca não é tão simples quanto pode parecer. Trata-se de um tema difícil, mas que procurarei abordar de maneira breve nas próximas páginas. Tenho feito isso já há algum tempo; escolho falar principalmente de temas complexos, onde há divergências de interpretações, e uma coisa interessante a observar quando nos debruçamos sobre temas difíceis ou polêmicos, é que geralmente o procedimento adotado pelas igrejas cristãs é diferente daquele sugerido pelo texto bíblico. Assim, mais que solucionar controvérsias seculares, procuro propor aos cristãos sinceros uma nova maneira de viver seu cristianismo. As pretensões são, portanto, mui modestas; nossas reformas são individuais e não sistêmicas. Contudo, não considero a discussão de hoje de pouca importância, pois a não compreensão do assunto já ocasionou muita injustiça, muitos traumas, muita violência e muitas mortes.

Para falar da exclusão ou mesmo excomunhão em igrejas cristãs, temos que delimitar nosso tema. Eu não tenho competência para falar de determinações legais. Acredito que uma igreja não pode escolher seus membros e impedir a entrada de quem quer que seja de acordo com a lei, mas só posso manter minhas argumentações dentro dos limites bíblicos, minha área de estudos. Então, teremos um estudo bíblico, o que é (temos que admitir) uma abordagem limitada para este tema. Espero que atenda às expectativas dos meus leitores, cada vez mais competentes e exigentes.

Entrando agora em nosso problema, gostaria de transcrever abaixo uma passagem bíblica que é provavelmente a mais usada para tratar do tema “exclusão”. Trata-se de Mateus 18.15-17, que diz assim:

“(15) Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste a teu irmão. (16) Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que, pela boca de duas ou três testemunhas, toda palavra seja confirmada. (17) E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano”

Aqui está um texto que costuma ser citado todas as vezes que se quer justificar o afastamento forçado de alguém. Lendo-o rapidamente vemos que há um personagem anônimo, provavelmente um cristão que peca contra um irmão e não aceita a repreensão de ninguém. As tentativas de demovê-lo são progressivas; primeiro ele é repreendido individualmente pelo irmão ofendido, depois por ele e mais outros, e por fim, por toda a igreja. Após estas tentativas, o pecador obstinado parece ser excluído da comunhão da igreja, pois passa a ser tratado como pecador e publicano. Bem, esse é o resultado de uma leitura rápida, mas há detalhes que quero abordar mais atentamente, pois acredito que nesses detalhes se escondem os segredos para leitura correta do texto.

Não sabemos que tipo de pecado foi cometido, mas o texto é só um exemplo, e pode ser aplicado a diversos tipos de pecados. Em todo caso, sabemos que é um pecado contra o irmão, o que já exclui grande número de possibilidades pecaminosas. Também estamos falando de algum tipo de erro que prejudica o próximo, e fazer mal ao próximo é quebrar um dos grandes mandamentos do amor (Mt 22.37-40). Um cristão que ofende um irmão está maculando o cristianismo em sua essência. Outra coisa que o texto nos diz é que esse pecado contra o irmão é mal visto por toda a comunidade. Veja que toda a igreja repreende o pecador conjuntamente tentando convencê-lo do erro, o que significa que não temos um líder qualquer tomando a decisão de excluir ninguém em nome dos outros. Trata-se de uma audiência pública, onde não há dois partidos lutando, mas uma pessoa que sozinha nega-se a seguir a opinião unânime da igreja, que provavelmente é mais acertada. Isso também exclui muitos pecados que são de particular interpretação, pois o erro em questão tem de ser óbvio. Em resumo, o processo indicado no texto só se aplica em casos extremos, onde não existem dúvidas sobre o mau procedimento do suposto réu, e todas as tentativas de conversão foram feitas.

Agora um detalhe mais técnico. Eu mesmo fui levado a usar o termo “réu” no final parágrafo anterior, palavra que pertence ao campo semântico dos julgamentos, cujo lugar vivencial é o tribunal. Mas será que temos em Mateus 18 um julgamento? O que nos leva a ver assim este texto? Penso que nossas Bíblias nos conduzem a isso ao empregarem outro termo jurídico que é “testemunhas”. Lendo isso nós somos automaticamente remetidos aos tribunais, e o pecador se torna um réu que deve se defender de acusadores. Todavia há nisso um possível problema de tradução, pois o substantivo grego que traduzimos por “testemunha” é martys, de onde deriva a nossa palavra martírio. Ela pode sim significar “testemunha”, alguém que está ali para declarar como ocorreu determinado evento, mas também possui um sentido menos jurídico, o de testemunhar ou proclamar a respeito do evangelho. Esse é o sentido que damos ao testemunho dos mártires, uma prova da veracidade do evangelho através da submissão à morte. Assim, é bem provável que a igreja de Mateus não esteja sugerindo a instituição de um tribunal contra o pecador, mas que esteja incentivando a pregação para que ele volte atrás. Essa proposta ocasiona uma pequena mudança na leitura do versículo 16 de conseqüências gigantescas; o objetivo já não é provar a culpa do pecador publicamente para então condená-lo, mas resgatá-lo através da pregação.

Confesso que posso estar enganado na hipótese acima, mas ela está de acordo com o que o texto diz no final. Como vimos, é fácil imaginar a partir do verso 17 que o pecador obstinado deve ser excluído da igreja; e ficamos com a impressão de que ele é esquecido, deixado de lado porque não quis ouvir aos apelos dos irmãos. Entretanto, mesmo em casos extremos em que um pecador ofende seu irmão, quebra o grande mandamento do amor ao próximo e não dá ouvidos a todos os apelos e pregações, fazendo-se um verdadeiro teimosos, não há condenação. O que o texto diz é que esse pecador deve ser tratado com pecador e publicano, e esses tais pecadores e publicanos são exatamente os alvos principais de nossa evangelização (obs. para uma boa hermenêutica desse texto não devemos nos deter nas categorias distintas de publicanos e pecadores, mas vê-los como categorias que resumem todos os tipos de pecadores que devem ser alcançados pela evangelização cristã).

Lembre-se de Jesus, que era na verdade mais amigo dos pecadores e publicanos do que dos religiosos. A pena, portanto, para um ex-irmão que se tornou um pecador obstinado, é que ele deve continuar sendo amigo da comunidade, comendo com eles, freqüentando a casa deles caso deseje, para que nessas ocasiões continue ouvindo sobre Jesus Cristo e quiçá se converta de seus maus caminhos. Nós, com nossa sede de vingança é que já usamos esse texto para excluir pessoas e por vezes até excomungá-las.

Anos atrás ouvi de um senhor que os protestantes não terão salvação, mas somente os católicos. O argumento era que Martinho Lutero fora excomungado pela igreja nos dias da reforma, e todos os descendentes do reformador estavam com ele fora da comunhão. Esta afirmação é tão ridícula que nem merece nossas considerações, mas será que a igreja tem esse direito de excomungar alguém e impedir-lhe a salvação? Será que algum homem recebeu o poder de salvar ou condenar outrem?

Lemos Mateus 18.15-17 e vimos que o texto é mais inclusivo do que pensávamos. Os pecadores continuam nossos amigos, e não devem ser afastados da igreja, embora não se concorde com o erro deles. A unidade textual seguinte, Mateus 18.18-19, dá ênfase à autoridade da igreja:

“Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus”

Algo parecido foi dito antes, quando Jesus diz a Pedro: “E eu te darei as chaves do Reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mateus 16.19).

Parece que a igreja católica estava correta ao entender que o texto bíblico dá ao cristão a autoridade para excluir pessoas, porém, o uso que se faz dos textos não está de acordo com o princípio cristão. Como certa vez me alertou meu professor e orientador Dr. Paulo Roberto Garcia, o objetivo dessas passagens não é nos dar autoridade para julgar os outros, mas nos alertar a respeito da grande responsabilidade que temos. Noutras palavras, a igreja possui as chaves das portas do céu, e pode até fechá-las a algumas pessoas, mas a sua responsabilidade é abrir tais portas para todos. A idéia é que no futuro, caso alguém não se encontre no Reino dos Céus, Deus poderá cobrar tais almas da igreja perguntando: “Você tinha a chave, por que você não abriu a porta para aquela pessoa entrar?”. Novamente, os textos nos responsabilizam pela salvação alheia, e não procuram nos dar o direito de condenação, o que seria contrário ao mandamento de não julgar (Mateus 7.1-5).

Falei do modo como deve-se tratar o pecador obstinado e da responsabilidade da igreja pela salvação de todos. Os textos estão na sequência em Mateus, devem ser lido conjuntamente. Agora, essa leitura pode ser confirmada pelo texto anterior a esses, Mateus 18.12-14:

“Que vos parece? Se algum homem tiver cem ovelhas, e uma delas se desgarrar, não irá pelos montes, deixando as noventa e nove, em busca da que se desgarrou? E, se, porventura, a acha, em verdade vos digo que maior prazer tem por aquela do que pelas noventa e nove que se não desgarraram. Assim também não é vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se perca”

E esses não são os únicos textos desse agrupamento, que pretende destacar exatamente a necessidade de se lutar por todos os filhos de Deus. Como ler essa analogia da ovelha perdida, que fala claramente que Deus não quer que ninguém se perca, e em seguida interpretar Mt 18.15-17 como um texto que legitima a exclusão? Isso seria um crime exegético imperdoável, mas coisa que fazemos quando queremos justificar biblicamente nossas atitudes desumanas.

Enfim, não expulse ninguém da igreja, nem trate cristãos e não-cristãos com distinção; não amaldiçoe ninguém nem se faça juiz em lugar de Deus; não desista do pecador e não deixe de perdoar seu ofensor... se quiser inclua isso nas margens da sua Bíblia, para nunca mais usá-la como defensora de suas más ações.

 

Fonte: http://compartilhandonoblog.blogspot.com.br/2010/09/igreja-tem-autoridade-para-excluir.html














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